Avançar para o conteúdo principal

Ela chegou

O diálogo, num futuro improvável.

Num dia como outro qualquer e, apesar da idade avançada, a chegada da morte é sempre uma surpresa.
O Político repousava no seu cadeirão depois de um almoço faustoso. As dores no braço, a dificuldade em respirar e a dor pungente no peito eram atribuídas à idade avançada. A morte, figura estereotipada e por isso livre de mais descrições, aproxima-se vagarosamente.
Morte: Estou aqui para reclamar a sua vida.
Político: Já, tão cedo? Só pode estar a brincar comigo.
Morte: Tão cedo. 86 anos já é qualquer coisa. Acredite tenho reclamado vidas consideravelmente mais precoces.
Político: Não estava à espera, só isso.
Morte: O que tem de ser, tem muita força. Vamos?
Político: Espere lá, tanta pressa para quê? Com certeza podemos encontrar aqui um entendimento.
Morte: Qual entendimento?
Político: Um entendimento no sentido de protelar a sua decisão de me levar...
Morte: Desde logo, a decisão não é minha. E depois isto não é propriamente negociável.
Político: Mas eu não estava à espera... E se nos sentarmos uns minutos, talvez seja possível chegar a um consenso...
Morte: O que é que o sr. fazia em vida? Qual era a sua profissão?
Político: Então a morte não sabe? Bem me pareceu que não sabia com quem estava a falar.
Morte: Nem tenho que saber. A minha função é apenas a de reclamar vidas. O que vocês fizeram em vida não me diz respeito, nem me interessa.
Político: Então porque perguntou?
Morte: Fiquei curioso.
Político: Com que então a morte é curiosa?
Morte: Acontece. Mas vai responder à minha pergunta ou fica para a próxima?
Político: Há uma próxima?
Morte: Nunca se sabe. Mas é só uma expressão, não comece a alimentar esperanças.
Político: Fui toda a minha vida político.
Morte: Isso explica muita coisa.
Político: Explica?
Morte: A sua conversa...
Político: Tenho conversa de político?
Morte: Não tarda muito vai começar a aldrabar-me...
Político: É essa a imagem que tem dos políticos?
Morte: Até certo ponto. E de quem é a culpa? Já levei muitos e, salvo honrosas excepções, tentam todos dar-me a volta. E os piores são aqueles políticos que também são advogados! Um inferno. Enfim, ossos do ofício.
Político: A manipulação faz parte do jogo político. Sempre foi assim.
Morte: E a mentira?
Político: Também. Mas podíamos chegar a um acordo, agindo de boa-fé e com transparência.
Morte: Meu caro amigo, chegou a uma fase do que resta da sua vida em que nenhum acordo o poderá salvar. Não há acordos, consensos e afins. Nunca ouviu dizer que na vida restam apenas duas certezas: impostos e a morte.
Político: Por falar em impostos... durante os meus mandatos procedi a reduções substanciais da carga fiscal. E se me deixar cá ficar, seguramente ainda poderei contribuir positivamente para o meu país.
Morte: Posso ser apenas a morte, mas não comece a subestimar-me. Aposto que sempre aumentou impostos, apesar das promessas...
Político: Os tempos eram difíceis, tempos de excepção. Tinhamos de salvar a nação, o senhor que lá esteve antes de mim deixou as contas públicas num pandemónio. Fizemos o que tinhamos de fazer.
Morte: Continua a querer aldrabar-me. Fizeram o que tinham de fazer? Pense melhor. À morte não se passam rasteiras.
Político: Voltando à questão que o trouxe aqui: quando é que tenho de o acompanhar?
Morte: Não me vai acompanhar. Não vamos fazer turismo. Eu vim buscá-lo e é já.
Político: Devo fazer as malas?
Morte: Como?
Político: Se devo fazer as malas.
Morte: Desista de tentar comprar tempo. Na vida muito se compra, na morte nada.
Político: Mas talvez não fosse má ideia levar um agasalho...
Morte: Não se preocupe com isso. No sítio para onde vai não faz frio.
Político: Curioso, quando passei férias em Punta Cana também julguei que não fazia frio e não se sei se tive azar, mas o facto é que apanhei duas ou três noites fresquinhas.
Morte: O sítio para onde vai nada tem a ver com Punta Cana.
Político: Posso ao menos despedir-me dos meus entes queridos?
Morte: Chega! Vamos.
Político: Para onde vamos? Espero que levem em linha de conta o serviço público que prestei ao meu país.
Morte: Leva-se muita coisa em linha de conta, mas não espere que a nossa noção de serviço público seja a mesma do que a sua: negociatas, corrupção, compadrio, favorecimentos, enriquecimento à custa dos outros e mais algumas promiscuidades não contam como serviço público.
Político: Estão a ver mal a coisa. Diga-me: aonde vamos!
Morte: Já vai perceber. E ainda lhe vou dar uma ajuda, autorizo que leve consigo um único objecto.
Político: Sim? Qual?
Morte: Uma mola.
Político: Uma mola? Que género de mola? Para quê?
Morte: Uma daquelas molas para estender a roupa, uma dessas serve perfeitamente.
Político: Não estou a perceber nada disto! Uma mola para quê? Que absurdo, que maçada!  Explique-se homem... morte...
Morte: É simples: vai perceber a necessidade da mola quando chegar ao seu destino. A mola serve para o nariz. É que por aqueles lados não se pode com o cheiro a enxofre.
Político: Pensava que o enxofre era inodoro.
Morte: A pensar morreu um burro! Experimente juntar enxofre ao fogo. Vamos?
Político: Que absurdo! Isto é um engano!
Morte: Vamos?

Morte e Político acabam por caminhar lado a lado, em silêncio. Finalmente.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mais uma indecência a somar-se a tantas outras

 O New York Times revelou (parte) o que Donald Trump havia escondido: o seu registo fiscal. E as revelações apenas surpreendem pelas quantias irrisórias de impostos que Trump pagou e os anos, longos anos, em que não pagou um dólar que fosse. Recorde-se que todos os presidentes americanos haviam revelado as suas declarações, apenas Trump tudo fizera para as manter sem segredo. Agora percebe-se porquê. Em 2016, ano da sua eleição, o ainda Presidente americano pagou 750 dólares em impostos, depois de declarar um manancial de prejuízos, estratégia adoptada nos tais dez anos, em quinze, em que nem sequer pagou impostos.  Ora, o homem que sempre se vangloriou do seu sucesso como empresário das duas, uma: ou não teve qualquer espécie de sucesso, apesar do estilo de vida luxuoso; ou simplesmente esta foi mais uma mentira indecente, ou um conjunto de mentiras indecentes. Seja como for, cai mais uma mancha na presidência de Donald Trump que, mesmo somando indecências atrás de indecências, vai fa

Outras verdades

 Ontem realizou-se o pior debate da história das presidenciais americanas. Trump, boçal, mentiroso, arrogante e malcriado, versus Biden que, apesar de ter garantido tudo fazer  para não cair na esparrela do seu adversário, acabou mesmo por cair, apelidando-o de mentiroso e palhaço.  Importa reconhecer a incomensurável dificuldade que qualquer ser humano sentiria se tivesse que debater com uma criança sem qualquer educação. Biden não foi excepção. Trump procurou impingir todo o género de mentiras, que aos ouvidos dos seus apoiante soam a outras verdades, verdades superiores à própria verdade. Trump mentiu profusamente, até sobre os seus pretensos apoios. O sheriff de Portland, por exemplo, já veio desmentir que alguma vez tivesse expressado apoio ao ainda Presidente americano. Diz-se por aí que Trump arrastou Biden para a lama. Eu tenho uma leitura diferente: Trump tem vindo a arrastar os EUA para lama. Os EUA, nestes árduos anos, tem vindo a perder influência e reputação e Trump é o ma

Normalização do fascismo

O PSD Açores, e naturalmente com a aprovação de Rui Rio, achou por bem coligar-se com o "Chega". Outros partidos como o Iniciativa Liberal (IL) e o CDS fizeram as mesmas escolhas, ainda que o primeiro corra atrás do prejuízo, sobretudo agora que a pandemia teve o condão de mostrar a importância do Estado Social que o IL tão avidamente pretende desmantelar, e o segundo se tenha transformado numa absoluta irrelevância. Porém, é Rui Rio, o mesmo que tem cultivado aquela imagem de moderado, que considera que o "Chega" nos Açores é diferente do "Chega" nacional. Rui Rio, o moderado, considera mesmo que algumas medidas do "Chega" como a estafada redução do Rendimento Social de Inserção é um excelente medida. Alheio às características singulares da região, Rui Rio pensa que com a ajuda do "Chega" vai tirar empregos da cartola para combater a subsidiodependência de que tanto fala, justificando deste modo a normalização que está a fazer de um pa