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E novamente a Ibéria


A obtusa questão da Ibéria volta novamente à ordem do dia pela voz de José Saramago, estimado escritor português a residir na ilha espanhola de Lanzarote há 14 anos. O prémio Nobel da literatura faz uma previsão que aponta para o seguinte cenário: Portugal passará a ser mais uma província de Espanha. José Saramago, o profeta, anseia por essa união chamada Ibéria. Mas na verdade, não se tratará propriamente de uma união, mas mais da integração de Portugal por Espanha, ou dito de outra forma o país passaria a ser mais uma província espanhola.

José Saramago terá as suas razões para se sentir ressentido com Portugal, depois de uma miríade de episódios que demonstraram a hipocrisia e o desprezo pela cultura, contudo, isso não justifica esta ideia da Ibéria. Com efeito, José Saramago estará a confundir a profecia com os seus desejos pessoais – ele já manifestou compreender e aceitar o conceito de Ibéria. De qualquer modo, e apesar de todas as razões de queixa que se possa ter do país, dos governantes, das elites ou do povo, a ideia de Portugal se tornar em mais uma província espanhola é inaceitável e pouco crível.

Compreender-se-á que um vasto conjunto de cidadãos se sentem descontentes e que esses descontentamentos aliados às inúmeras dificuldades com que são confrontados fazem com alguns portugueses encarem Espanha como uma espécie de salvador. Aceitar-se-á que estas pessoas apenas almejam melhores condições de vida, mas ideia de Portugal cessar a sua existência como país não seria uma solução para o país, muito pelo contrário – alguns problemas seriam, em tese, resolvidos ou cerceados; mas no lugar destes surgiriam outros como a subalternização, uma identidade caracterizada pela tibieza, a confusão, a ausência do sentimento de pertença, e fundamentalmente a perda do orgulho inefável de se ser cidadão de um país.

Por outro lado, a previsão de José Saramago não faz qualquer sentido na medida em que é inexequível. Portugal é um Estado da União Europeia e Espanha está na mesma situação, são Estados independentes que têm boas relações comerciais e de vizinhança. Apenas isso. Não se pode seriamente equacionar o seguinte cenário: no contexto da União Europeia, um Estado independente como Portugal se sujeitar voluntariamente ou não aos ditames de um país estrangeiro; perdendo desta forma a sua independência, a importância da sua História, a força da sua identidade. Note-se, de resto, que Espanha não será propriamente o exemplo da unidade nacional – neste particular Portugal é um paradigma da unidade nacional. Por conseguinte, a ideia de Ibéria para além de obtusa é de difícil execução ou mesmo inexequível.

Em súmula, percebe-se e aceita-se que Portugal tem um vasto rol de problemas, dos quais sobressaem as dificuldades económicas e o atraso do país. Depois de anos a receber torrentes de dinheiros comunitários, depois de décadas de promessas, depois de uma multiplicidade de governantes sem qualidade e sem brio, e após a persistência inabalável de uma crise que se traduz num grave retrocesso do bem-estar social, aceitam-se as razões do descontentamento. Não se aceita, contudo, a saída mais fácil, mais cómoda, a ideia de Espanha “tomar conta disto”.

Seria curioso ver aqueles que anseiam pela Ibéria e que são os mesmos que têm aqueles rasgos de patriotismo pela selecção nacional de futebol (e de outras modalidades), reagir a um jogo para o campeonato do mundo de futebol – torceriam por Espanha, envergariam as cores espanholas? Cantariam o hino espanhol? Portugal deixaria de competir como país independente. Evoca-se o exemplo futebolístico por ser aquele mais próximo de muitos portugueses, e que representa uma forte demonstração de patriotismo. Talvez pensando neste e noutros exemplos alguns consigam recuperar o discernimento perdido.

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