Avançar para o conteúdo principal

Razões para a Greve

Está convocada uma greve geral para dia 24 do próximo mês. Porventura haverá quem, neste momento, não considere que existam razões para se aderir à greve, afinal de contas o cenário que nos é apresentado é o de um país com extremas dificuldades financeiras. Nestas circunstâncias, dir-se-á que o Orçamento de Estado (que será viabilizado), e as anteriores medidas do Governo afiguram-se como sendo inevitáveis.
Com efeito, a ideia de que as greves mais não são do que uma forma de prejudicar um país depauperado já tinha sido veiculada, ainda antes das puerilidades - as manifestadas esta semana - dos dois maiores partidos. Além disso, os últimos dias mostram que não há nada a fazer, a não ser aceitar as medidas difíceis. Pelo menos é esta a imagem que é transversal a toda a comunicação social.
Todavia, e contrariamente ao pensamento dominante, há muito que os cidadãos podem fazer. Os cidadãos têm toda a legitimidade para participarem mais activamente na construção do país, a greve é uma forma de participar e uma das grandes conquistas sociais. Aliás, importa recordar que as sociedades só evoluem quando a sociedade se empenha nessa evolução - lembre-se que as grandes conquistas sociais, as tais que ainda nos vão proporcionando algum bem estar social, foram também conseguidas através da participação dos cidadãos em greves e manifestações. O papel do sindicalismo foi determinante. Hoje dizem-nos que não será bem assim.
Quantos às razões para a greve, refira-se, desde já, que apesar da inevitabilidade do Orçamento de Estado (ainda havia tempo para se desenhar um Orçamento mais eficaz e equitativo, o que não houve foi vontade política), os cidadãos têm toda a legitimidade em mostrarem o seu desagrado em relação ao passado, presente e futuro:

- É legitimo protestar contra um passado pejado de erros, incoerências, interesses alheios ao país e ganância eleitoral. Dizem-nos que nada adianta pensar no passado. Ora, esquecer esse passado é desresponsabilizar quem tem culpas pela actual situação de um país que mesmo sem a crise internacional viveria uma qualquer crise, como tem vivido ao longo dos últimos dez anos.


- Existe todo o fundamento em se criticar os cortes que afectam os trabalhadores, em detrimento de se acabar com os inúmeros vícios do Estado. É legítimo condenar publicamente a ausência de rumo para a economia portuguesa; a inexistência de ideias que fomentem o crescimento económico e que possam dar esperança e uma ideia de futuro às pessoas. Os cidadãos têm toda a razão para protestar contra uma classe política egocêntrica, irresponsável e inepta;


- E talvez ainda mais importante, existe toda a legitimidade em se mostrar aos senhores que se seguem que os Portugueses não estão dispostos a aceitar tudo o que lhes seja imposto e que a democracia representativa não oferece um cheque em branco à arrogância, ao autoritarismo e à ausência de diálogo entre todos os intervenientes, incluindo a sociedade civil. Deve começar já uma campanha contra a ideia que se instalou - a ideia que postula que o povo é sereno e que, nessa medida, está disposto a aceitar tudo. Já aqui referi que chegará o dia em que, por força das circunstâncias adversas, com ou sem FMI, nos vão dizer que são necessários novos sacrifícios; chegará o dia em que o Estado Social esboroar-se-á, prescindindo-se dos seus pilares: Saúde, Educação e Segurança Social. Há sinais que nos indicam claramente que essas propostas estão em cima da mesa e a crise vai acabar por lhes dar força. O resultado será a existência ainda mais evidente de dois tipos de cidadãos: os que têm dinheiro e os outros. Se perdermos o pouco que conquistámos, perdemos tudo.
Agora é o momento para dizer que não aceitaremos a flexibilização das leis laborais, o que num país de chicos-espertos e cujos recursos humanos são debilmente formados, significa trabalho escravo. Menos direitos para os trabalhadores, mais horas de trabalho, aumento da precariedade. Será esse o resultado de uma maior flexibilização do mercado de trabalho. É hoje que temos de dizer que não aceitaremos a perda de direitos que consubstanciaram a luta de tantos antes de nós que, com sacrifícios inimagináveis, alcançaram conquistas que hoje são garantias, ou pelo menos deveriam ser.
É agora que temos que mostrar que rejeitamos as indicações da OCDE ou de outras instâncias supra-nacionais e que a melhoria da competitividade da economia portuguesa passa por uma Justiça eficaz, por um sistema fiscal sólido, sem tergiversações, pela qualificação séria dos recursos humanos - incluindo as entidades patronais -, sem uma burocracia endémica, sem um Estado promiscuo. E não como a OCDE indica, ou seja através da flexibilização das leis laborais.

Só poderemos melhorar o nosso futuro colectivo se começarmos hoje a mostrar que estamos presentes, saindo inexoravelmente do estado de inércia que tanto nos caracteriza, deixando de ser sempre reféns da inevitabilidade que mais não é do que um refúgio para quem se deixou apanhar pela letargia. Tudo é inevitável. Por conseguinte, o melhor é ficarmos em casa, em silêncio, confortavelmente instalados no sofá (o tal sofá que queríamos substituir, mas que as circunstâncias não o permitem, afinal, o país já não está de tanga, está nu e de cócoras). Se no passado, todos tivessem adoptado a mesma atitude de ficar em silêncio, a evolução social que nos garantiu os mínimos de bem-estar seria uma ilusão. É também nossa responsabilidade lutar para que as gerações mais novas e as vindouras possam viver num contexto de equidade e de dignidade. Se nos resignarmos é garantido que isso não vai acontecer.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mais uma indecência a somar-se a tantas outras

 O New York Times revelou (parte) o que Donald Trump havia escondido: o seu registo fiscal. E as revelações apenas surpreendem pelas quantias irrisórias de impostos que Trump pagou e os anos, longos anos, em que não pagou um dólar que fosse. Recorde-se que todos os presidentes americanos haviam revelado as suas declarações, apenas Trump tudo fizera para as manter sem segredo. Agora percebe-se porquê. Em 2016, ano da sua eleição, o ainda Presidente americano pagou 750 dólares em impostos, depois de declarar um manancial de prejuízos, estratégia adoptada nos tais dez anos, em quinze, em que nem sequer pagou impostos.  Ora, o homem que sempre se vangloriou do seu sucesso como empresário das duas, uma: ou não teve qualquer espécie de sucesso, apesar do estilo de vida luxuoso; ou simplesmente esta foi mais uma mentira indecente, ou um conjunto de mentiras indecentes. Seja como for, cai mais uma mancha na presidência de Donald Trump que, mesmo somando indecências atrás de indecências, vai fa

Outras verdades

 Ontem realizou-se o pior debate da história das presidenciais americanas. Trump, boçal, mentiroso, arrogante e malcriado, versus Biden que, apesar de ter garantido tudo fazer  para não cair na esparrela do seu adversário, acabou mesmo por cair, apelidando-o de mentiroso e palhaço.  Importa reconhecer a incomensurável dificuldade que qualquer ser humano sentiria se tivesse que debater com uma criança sem qualquer educação. Biden não foi excepção. Trump procurou impingir todo o género de mentiras, que aos ouvidos dos seus apoiante soam a outras verdades, verdades superiores à própria verdade. Trump mentiu profusamente, até sobre os seus pretensos apoios. O sheriff de Portland, por exemplo, já veio desmentir que alguma vez tivesse expressado apoio ao ainda Presidente americano. Diz-se por aí que Trump arrastou Biden para a lama. Eu tenho uma leitura diferente: Trump tem vindo a arrastar os EUA para lama. Os EUA, nestes árduos anos, tem vindo a perder influência e reputação e Trump é o ma

Normalização do fascismo

O PSD Açores, e naturalmente com a aprovação de Rui Rio, achou por bem coligar-se com o "Chega". Outros partidos como o Iniciativa Liberal (IL) e o CDS fizeram as mesmas escolhas, ainda que o primeiro corra atrás do prejuízo, sobretudo agora que a pandemia teve o condão de mostrar a importância do Estado Social que o IL tão avidamente pretende desmantelar, e o segundo se tenha transformado numa absoluta irrelevância. Porém, é Rui Rio, o mesmo que tem cultivado aquela imagem de moderado, que considera que o "Chega" nos Açores é diferente do "Chega" nacional. Rui Rio, o moderado, considera mesmo que algumas medidas do "Chega" como a estafada redução do Rendimento Social de Inserção é um excelente medida. Alheio às características singulares da região, Rui Rio pensa que com a ajuda do "Chega" vai tirar empregos da cartola para combater a subsidiodependência de que tanto fala, justificando deste modo a normalização que está a fazer de um pa