Avançar para o conteúdo principal

Relativização da democracia

Os acontecimentos dos últimos dias mostram uma relativização da democracia e dos seus fundamentos e liberdades. O impacto que certas transcrições de escutas provocaram é comparável a uma pequena detonação e não a uma bomba atómica como seria de esperar.

Se fizermos um ligeiro exercício de análise de outras democracias europeias ficamos assombrados com as diferenças. As instituições democráticas funcionam e, embora a indiferença dos cidadãos também se verifique, existe uma sociedade civil que reage ao invés de se resignar, e mais significativo, os representantes eleitos consideram seu dever prestar esclarecimentos aos cidadãos.

A nossa democracia sai fragilizada com os últimos acontecimentos e nem as alegadas tentativas de condicionamento quer da comunicação social, quer do Presidente da República provocam uma reacção dos cidadãos digna de registo. O facto de haver a suspeição de que o poder político alia-se ao poder económico com o objectivo de tentar condicionar liberdades fundamentais como a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não tem consequências de maior, e mais uma vez porque a democracia é relativizada, a começar pelos representantes políticos eleitos.

Com efeito, a palavra “crise” faz parte do nosso vocabulário colectivo há praticamente dez anos, mas quando utilizamos a palavra estamos a fazer referência à crise económica. Porém, note-se que estamos a viver uma crise política com consequências ainda mais dramáticas do que a crise económica. De facto, a crise económica não será resolvida enquanto existir uma crise política.

De resto, a divulgação da transcrição das escutas que envolve pessoas próximas do primeiro-ministro contribui para um clima de afastamento entre cidadãos e um dos pilares da democracia: os partidos políticos. Infelizmente, a letargia acaba por ser a resposta dos cidadãos à promiscuidade entre política e poder económico, às tentativas de cercear liberdades fundamentais, à recusa em viver salutarmente numa democracia de cariz pluralista. Essa resposta tem contribuído para a deterioração da qualidade da nossa democracia.

É legítimo afirmar que não se está a viver uma situação limite em que a própria democracia esteja em causa. Mas a paulatina degradação da sua qualidade e a recusa por parte dos responsáveis políticos em contribuir efectivamente para a consolidação do sistema democrático são fortes sinais de alerta que não podem ficar sem consequências práticas. Quem não está preparado para a consolidar o sistema democrático, simplesmente não tem lugar em lugares de representação política.

Para finalizar, importa sublinhar que o nosso infortúnio configura uma indesmentível ironia: enquanto a grande civilização grega teve o seu Sócrates que, embora tenha tido sido repudiado pelos seus concidadãos, não deixou de mostrar a sua paixão pela liberdade, lutando por ela até ao fim; o nosso é recorrentemente acusado de envidar esforços no sentido de condicionar liberdades indissociáveis do sistema democrático.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mais uma indecência a somar-se a tantas outras

 O New York Times revelou (parte) o que Donald Trump havia escondido: o seu registo fiscal. E as revelações apenas surpreendem pelas quantias irrisórias de impostos que Trump pagou e os anos, longos anos, em que não pagou um dólar que fosse. Recorde-se que todos os presidentes americanos haviam revelado as suas declarações, apenas Trump tudo fizera para as manter sem segredo. Agora percebe-se porquê. Em 2016, ano da sua eleição, o ainda Presidente americano pagou 750 dólares em impostos, depois de declarar um manancial de prejuízos, estratégia adoptada nos tais dez anos, em quinze, em que nem sequer pagou impostos.  Ora, o homem que sempre se vangloriou do seu sucesso como empresário das duas, uma: ou não teve qualquer espécie de sucesso, apesar do estilo de vida luxuoso; ou simplesmente esta foi mais uma mentira indecente, ou um conjunto de mentiras indecentes. Seja como for, cai mais uma mancha na presidência de Donald Trump que, mesmo somando indecências atrás de indecências, vai fa

Outras verdades

 Ontem realizou-se o pior debate da história das presidenciais americanas. Trump, boçal, mentiroso, arrogante e malcriado, versus Biden que, apesar de ter garantido tudo fazer  para não cair na esparrela do seu adversário, acabou mesmo por cair, apelidando-o de mentiroso e palhaço.  Importa reconhecer a incomensurável dificuldade que qualquer ser humano sentiria se tivesse que debater com uma criança sem qualquer educação. Biden não foi excepção. Trump procurou impingir todo o género de mentiras, que aos ouvidos dos seus apoiante soam a outras verdades, verdades superiores à própria verdade. Trump mentiu profusamente, até sobre os seus pretensos apoios. O sheriff de Portland, por exemplo, já veio desmentir que alguma vez tivesse expressado apoio ao ainda Presidente americano. Diz-se por aí que Trump arrastou Biden para a lama. Eu tenho uma leitura diferente: Trump tem vindo a arrastar os EUA para lama. Os EUA, nestes árduos anos, tem vindo a perder influência e reputação e Trump é o ma

Normalização do fascismo

O PSD Açores, e naturalmente com a aprovação de Rui Rio, achou por bem coligar-se com o "Chega". Outros partidos como o Iniciativa Liberal (IL) e o CDS fizeram as mesmas escolhas, ainda que o primeiro corra atrás do prejuízo, sobretudo agora que a pandemia teve o condão de mostrar a importância do Estado Social que o IL tão avidamente pretende desmantelar, e o segundo se tenha transformado numa absoluta irrelevância. Porém, é Rui Rio, o mesmo que tem cultivado aquela imagem de moderado, que considera que o "Chega" nos Açores é diferente do "Chega" nacional. Rui Rio, o moderado, considera mesmo que algumas medidas do "Chega" como a estafada redução do Rendimento Social de Inserção é um excelente medida. Alheio às características singulares da região, Rui Rio pensa que com a ajuda do "Chega" vai tirar empregos da cartola para combater a subsidiodependência de que tanto fala, justificando deste modo a normalização que está a fazer de um pa