Avançar para o conteúdo principal

Dogmas e liberdade de expressão

José Saramago foi alvo de ferozes críticas por ter feito observações menos abonatórias da Bíblia e de Deus. Parte do país ignorou, por alguns momentos, que o sistema democrático é sinónimo de liberdades, designadamente de liberdade de expressão. Até um político do PSD,eurodeputado, proferiu palavras como "vergonha" e "renúncia à cidadania", mostrando que a classe política, ou parte dela, olha de forma despicienda para a liberdade de expressão. De resto, exemplos não faltam desse desprezo. As críticas, mesmo as destrutivas, são normais num contexto democrático. Agora o que não é aceitável é que se recomende que Saramago ou outro cidadão qualquer renuncie à sua cidadania por ter emitido opinião.
O Prémio Nobel da Literatura tocou em dogmas cuja discussão acaba invariavelmente por ser inquinada. Não ouvimos uma linha de argumentação por parte dos detractores do escritor que fosse sólida e que defenda as suas posições; assistimos apenas a acusações de ignorância e à irredutibilidade em oposição à convivência democrática que é contexto ideal para a pluralidade de opinião.
Se José Saramago optasse por criticar não a Bíblia, mas outro livro (ou conjunto de textos) considerado sagrado para uma qualquer religião, o tal coro de críticas manter-se-ia em silêncio e, se necessário, os acérrimos críticos de Saramago seriam os primeiros a levantar a voz pela liberdade de expressão. Consequentemente, há dogmas cujas críticas são aceitáveis e outros não.
É evidente que as posições adoptadas pelo escritor são, amiúde, polémicas - desde o silêncio sobre matérias que chocam com os seus princípios ideológicos, passando pela defesa da inevitabilidade de uma Ibéria. Mas é possível discutir-se estas questões e refutá-las de forma serena e profícua . O mesmo já não acontece quando se trata de religião e de "sensibilidades". Por esta ordem de ideias, de cada vez que Islão, o Hinduísmo, Budismo ou o Zoroastrismo , por exemplo, forem alvo de críticas, objecções, ou até de humor, espera-se que, em nome da coerência, as mesmas pessoas que se insurgem contra Saramago se manifestem.
Para finalizar, dizer apenas que a polémica em torno de Saramago foi disseminada internacionalmente. Ficamos, nós portugueses, mal na fotografia, mostrando que a liberdade de expressão é, quando nos convém, remetida para segundo plano; e embora ninguém tenha proibido o escritor de emitir a sua opinião, o desconforto e os impropérios que foram dirigidos ao prémio Nobel da Literatura denotam um amadorismo primário no que toca ao respeito pela democracia e pela pluralidade de opinião. Que se discuta este e outros assuntos, mas que se respeite outras opiniões sem cair na tentação da defesa cega deste e de outros dogmas, ferindo mais uma vez o espírito democrático que deveria ser a base de qualquer discussão, em particular daqueles que ocupam cargos de responsabilidade e de representação.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mais uma indecência a somar-se a tantas outras

 O New York Times revelou (parte) o que Donald Trump havia escondido: o seu registo fiscal. E as revelações apenas surpreendem pelas quantias irrisórias de impostos que Trump pagou e os anos, longos anos, em que não pagou um dólar que fosse. Recorde-se que todos os presidentes americanos haviam revelado as suas declarações, apenas Trump tudo fizera para as manter sem segredo. Agora percebe-se porquê. Em 2016, ano da sua eleição, o ainda Presidente americano pagou 750 dólares em impostos, depois de declarar um manancial de prejuízos, estratégia adoptada nos tais dez anos, em quinze, em que nem sequer pagou impostos.  Ora, o homem que sempre se vangloriou do seu sucesso como empresário das duas, uma: ou não teve qualquer espécie de sucesso, apesar do estilo de vida luxuoso; ou simplesmente esta foi mais uma mentira indecente, ou um conjunto de mentiras indecentes. Seja como for, cai mais uma mancha na presidência de Donald Trump que, mesmo somando indecências atrás de indecências, vai fa

Normalização do fascismo

O PSD Açores, e naturalmente com a aprovação de Rui Rio, achou por bem coligar-se com o "Chega". Outros partidos como o Iniciativa Liberal (IL) e o CDS fizeram as mesmas escolhas, ainda que o primeiro corra atrás do prejuízo, sobretudo agora que a pandemia teve o condão de mostrar a importância do Estado Social que o IL tão avidamente pretende desmantelar, e o segundo se tenha transformado numa absoluta irrelevância. Porém, é Rui Rio, o mesmo que tem cultivado aquela imagem de moderado, que considera que o "Chega" nos Açores é diferente do "Chega" nacional. Rui Rio, o moderado, considera mesmo que algumas medidas do "Chega" como a estafada redução do Rendimento Social de Inserção é um excelente medida. Alheio às características singulares da região, Rui Rio pensa que com a ajuda do "Chega" vai tirar empregos da cartola para combater a subsidiodependência de que tanto fala, justificando deste modo a normalização que está a fazer de um pa

Outras verdades

 Ontem realizou-se o pior debate da história das presidenciais americanas. Trump, boçal, mentiroso, arrogante e malcriado, versus Biden que, apesar de ter garantido tudo fazer  para não cair na esparrela do seu adversário, acabou mesmo por cair, apelidando-o de mentiroso e palhaço.  Importa reconhecer a incomensurável dificuldade que qualquer ser humano sentiria se tivesse que debater com uma criança sem qualquer educação. Biden não foi excepção. Trump procurou impingir todo o género de mentiras, que aos ouvidos dos seus apoiante soam a outras verdades, verdades superiores à própria verdade. Trump mentiu profusamente, até sobre os seus pretensos apoios. O sheriff de Portland, por exemplo, já veio desmentir que alguma vez tivesse expressado apoio ao ainda Presidente americano. Diz-se por aí que Trump arrastou Biden para a lama. Eu tenho uma leitura diferente: Trump tem vindo a arrastar os EUA para lama. Os EUA, nestes árduos anos, tem vindo a perder influência e reputação e Trump é o ma