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Afinal não há referendo sobre o Tratado de Lisboa

Tudo indica que o primeiro-ministro vai anunciar hoje a ratificação do Tratado de Lisboa por via parlamentar. Fica assim excluída a hipótese de o mesmo tratado ser ratificado por via referendária. Segundo alguns órgãos de comunicação social, o primeiro-ministro não foi imune às opiniões do Presidente da República, mas também de vários líderes europeus que se opõem à possibilidade de referendo, entre os quais Angela Merkel, Sarkozy e Gordon Brown. Recorde-se que foi feita uma espécie de acordo entre os vários líderes europeus no sentido de fazer a ratificação do tratado sem levantar problemas, ou dito de outro modo, o processo de ratificação nos vários Estados-membros deve ser feito através dos parlamentos.
De qualquer modo, os cidadãos europeus ficam, mais uma vez, fora das decisões europeias. Ninguém contesta a legitimidade dos parlamentos para se pronunciarem sobre essa matéria específica, o que se trata é da construção europeia e a sua viabilidade a médio e longo prazo. Ora, se por um lado se entende alguns argumentos contra o referendo, designadamente os riscos que se estaria a correr no caso de dar voz aos cidadãos; por outro, não se pode continuar a perpetuar a ideia de que os cidadãos têm de viver num espaço político (cada vez menos) e económico (cada vez mais) sem que sobre essa matéria tenham alguma coisa a dizer.
Outros advogam que a complexidade do tratado, a sua dificuldade, visivelmente deliberada, impede os cidadãos de o compreender e, por conseguinte, os cidadãos europeus encontram-se desprovidos de capacidades para se pronunciarem sobre o Tratado Reformador. Mas, não se estará desta forma a incorrer no erro de menosprezar os cidadãos, diminuindo a sua importância, dando lugar antes a repúblicas de doutos que tudo decidem, sem se questionarem sobre a vontade dos cidadãos? Este cinismo e esta altivez bacoca dão um contributo para o afastamento, porventura indelével, entre os cidadãos europeus e as suas instituições.
Não havendo referendo, perde-se assim uma oportunidade de ouro para se discutir a perda de poder da Comissão europeia, e as consequências nefastas para Portugal, evita-se deste modo a discussão sobre o Conselho Europeu e a sua preponderância nas decisões comunitárias. Sem referendo fica por discutir a figura do Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Segurança, as decisões por maioria qualificada, as cooperações reforçadas e as minorias de bloqueio, e o aumento de poderes do Tribunal Europeu de Justiça, só para dar alguns exemplos.
É claro que é possível abordar-se estas e outras questões mesmo sem referendo, mas a profundidade da discussão será praticamente inexistente, particularmente num país onde a União Europeia é assunto pouco discutido e onde reina o desinteresse sobre as questões europeias. Paralelamente, e não obstante a legitimidade dos líderes europeus em negociarem o tratado ou a legitimidade dos parlamentos em decidirem – não se põe em causa, de forma nenhuma, as democracias representativas, nas quais os cidadãos mandatam os seus representantes, e portanto, a sua legitimidade não é posta em causa –, o silêncio forçado dos cidadãos, depois de os mesmos terem chumbado uma constituição com similitudes insofismáveis com o presente tratado, é um péssimo augúrio para a construção europeia. Venceu o medo que os líderes europeus têm dos seus cidadãos.

Comentários

fraldinhas disse…
Primeiro devo dizer que sou contra referendos, se um governo é eleito, é por alguma razão, para tomar decisões.

Em segundo lugar acho que por muitos referendos que se façam a europa irá sempre caminhar para onde os três grandes quiserem(Inglaterra, Alemanha e França), portanto a única coisa que muda com este tratado é que Portugla irá ser cada vez mais pequeno na UE, mas tambem outra coisa não seria de esperar.
Este comentário foi removido pelo autor.
Se pensarmos assim, nem sequer se contemplava a possibilidade de referendo, excluía-se essa hipótese. Uma das riquezas das democracias é a conciliação entre a democracia representativa e a democracia directa. Em determinadas situações, designadamente quando o que se está em causa é muito mais do que muitos pensam, o referendo deve ser equacionado. Quando se caminha para o federalismo, quando se verifica uma repartição de competências europeias e nacionais, quando há alterações na forma de votação, quando pode haver uma sobreposição das decisões do Tribunal Europeu relativamente aos tribunais nacionais, os cidadãos não podem ser excluídos de decisões desta natureza. Vais desculpar-me, mas a tua posição é conformista. E mais razão dás à existência de um referendo quando afirmas que nada adianta porque a Europa anda a reboque de três países, pois, com este Tratado são os grandes que ganham e os pequenos e médios que perdem. E não adianta referendar isso? Eu enalteci no texto a legitimidade do parlamento e do referendo – da consulta popular –, ambos são legítimos, mas quando o que está em causa são alterações de fundo no funcionamento da UE, perda de soberanias, e estamos a falar de um país que ainda não se pronunciou sobre matérias europeias, a consulta popular deve ser equacionada. Além disso, o facto de um governo ser eleito e por isso mesmo ser o único dotado da tomada de decisão não é um argumento sólido, se pensarmos dessa forma não havia sequer qualquer consulta popular – os governos e a Assembleia da República decidiam isoladamente. A consolidação democrática faz-se de equilíbrios e da participação dos cidadãos sempre que possível – participação activa. Só não há referendo porque os líderes europeus têm medo dos cidadãos. Não está relacionado com a legitimidade de ratificação por via parlamentar ou por referendo. É apenas isso, medo. Medo e extenuação. Assim, a construção de uma Europa à revelia dos cidadãos e com receio dos cidadãos dificilmente pode ser encarado como sendo um projecto exequível.

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